SINOPSE
“P’s”, inspirado em “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão”, obra na qual Foucault analisa um caso de parricídio ocorrido no século XIX. “P’s” traz para uma vila do sertão nordestino a história de P, jovem que assassina brutalmente alguns familiares. Focando nas intensas contradições do personagem e passando por momentos que vão desde a sua infância até o seu suicídio, “P’s” procura trazer à tona o homem além do seu ato, não com o intuito de explicá-lo e, consequentemente, diminuí-lo, mas com a vontade única de nos aproximar dele e, com isto, talvez também nos aproximar de nós mesmos. P’s coloca em discussão a memória, a psiquiatria, a justiça e o amor desmedido.
PROJETO DE MONTAGEM
A parceria entre a Associação União do Sobrado e a Trapiá Cia Teatral (UFRN-CERES), ambas de Caicó, resultou na montagem do espetáculo “P’s” do dramaturgo catarinense Gregory Branco Haertel, com patrocínio do SESC RN por meio do Edital de Circulação das Artes Cênicas Potiguares 2014 e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, através da Pró-Reitoria de Extensão e Centro de Ensino Superior do Seridó.
Inspirado em “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão”, obra na qual Michel Foucault descreve e analisa um caso real de parricídio acontecido na primeira metade do século XIX, o espetáculo “P’s” traz para uma vila do sertão nordestino a história de P, jovem que assassina brutalmente alguns familiares seus. Focando nas intensas contradições do personagem e passando por momentos que vão desde a sua infância até a sua morte, “P’s” procura trazer à tona o homem além do seu ato, não com o intuito de explicá-lo e, consequentemente, diminuí-lo, mas com a vontade única de nos aproximar dele e, com isto, talvez também nos aproximar de nós mesmos.
Para esta montagem se uniram profissionais das artes cênicas, da música e das artes visuais. Esta união de experiências fez com que o espetáculo tivesse uma estética construída em um processo colaborativo, onde todos os agentes estiveram a serviço da cena e de sua realização.
Transportar esta história real que ocorre originalmente em uma vila francesa no final do século XIX para uma pequena comunidade do sertão nordestino é um dos aspectos mais poéticos de todo o processo. Elementos da caatinga fazem parte deste universo de P (nome da personagem).
A trama do espetáculo é universal já que fala de ódios e amores convivendo no mesmo espaço e nos mesmos seres humanos. A direção de Lourival Andrade optou por um solo, que terá a atuação de Alexandre Muniz, ator de Caicó, e que conduzirá o público pelo universo de P. Loucura e lucidez serão compósitas e não excludentes. Tendo como princípio uma corporeidade de alguém que sofre e ao mesmo tempo sente que fez um bem ao matar seus familiares, o ator tem como norteador as sensibilidades de pássaros que o perseguem, já que este os matou na sua infância, sem um motivo aparente.
Produz sons de pássaros da caatinga e a trilha sonora explorou estes sons e de instrumentos alternativos procurando remeter ao ambiente do sertão e explorando sons da seca, da religiosidade e dos lamentos expressados pela personagem que através da trilha vai ganhar mais vida e aproximar o público de seu universo vivencial e mental.
Vale destacar que a trilha sonora será executada ao vivo pelos músicos Aglailson França e Emanuel Bonequeiro, que também a conceberam. O cenário concebido pelo artista plástico Custódio Jacinto de Medeiros, colocará a personagem em uma prisão de galhos/varas de marmeleiro, planta típica da caatinga e com vários elementos que comporão a cena e que fazem parte do universo sertanejo.
Estes elementos são utilizados por P no desenvolvimento da trama, nada está em cena como mera ilustração. A iluminação que foi concebida por Adriano Nunes, conduz os nossos olhares ao ambiente de um calor escaldante e das sensações da personagem.
FICHA TÉCNICA
DIREÇÃO: Lourival Andrade
TEXTO: Gregory Haertel
ELENCO: Alexandre Muniz
CONCEPÇÃO DE TRILHA SONORA: Aglailson França
EXECUÇÃO DE TRILHA SONORA (músicos/atores): Emanuel Bonequeiro e Aglailson França
CENÁRIO E FIGURINO: Custódio Jacinto
CONCEPÇÃO DE ILUMINAÇÃO: Adriano Nunes
EXECUÇÃO DE ILUMINAÇÃO: Custódio Jacinto
CRIAÇÃO DE MATERIAL GRÁFICO: André Nascimento
PRODUÇÃO VISUAL: Beatriz Alves
FOTÓGRAFOS: Jandison Nascimento, Jefferson Dutra e Andrey Blanco
TRAJETÓRIA
2015
– Estreia do espetáculo no SESC de Campina Grande/PB (23/07/2015)
– VII Festival Atos de Teatro Universitário (Campina Grande/PB – de 03 a 06/12/2015)
2016
– VI Festival de Monólogos – Teatro e Dança – Solos Brasileiros (Fortaleza/CE – de 16 a 20/02/2016)
– II Festival Fuá – Festival Universitário de Artes (Campina Grande/PB – de 06 a 08/04/2016)
– Circuito SESC das Artes Cênicas Potiguares (Caicó/RN, Natal/RN e Mossoró/RN – março/2016)
– 8º Festival Nacional de Teatro de Jales/SP (de 30/04 a 08/05/2016)
– 29º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau/SC (de 07 a 14/07/2016)
– Festival Ipitanga de Teatro FIT Bahia 2016 em Lauro de Freitas/BA (05 a 13/08/2016)
– Aldeia SESC Seridó (outubro/2016)
– 11º Festival Nacional de Teatro de Piracicaba/SP (05 a 12/11/2016).
– Temporada no Auditório do Centro de Ensino Superior do Seridó – UFRN – Caicó (fevereiro/2016)
– Temporada no Galpão Cacimba das Artes – Caicó (agosto/2016)
2017
– IV Semana Acadêmica do CCHA – Campus IV da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) – Catolé do Rocha/PB (20/04/2017)
– Primavera do Teatro – Festival Nordestino de Teatro em Guarabira/PB (23 a 30/09/2017)
– Aldeia SESC Seridó 2017 – Intercâmbio Palco Giratório com o Grupo Clowns de Shakespeare (04 a 06/10/2017)
– I Festival Nacional de Teatro Universitário da UFRN (Caicó/RN – 12 a 16/12/2017)
2018
– PALCO GIRATÓRIO SESC 2018 – (Fortaleza/CE, Vitória/ES, Rio do Sul/SC, Brusque/SC, Blumenau/SC, Balneário Camboriú/SC, Florianópolis/SC, Rio de Janeiro/RJ, Cuiabá//MT, Porto Alegre/RS, São Leopoldo/RS, Novo Hamburgo/RS, Montenegro/RS, Lajeado/RS, Erechim/RS, Pelotas/RS, Camacuã/RS, Belo Horizonte/MG, Juiz de Fora/MG, Campo Grande/MS, Brasília/DF, São Paulo/SP, Poconé/MT, Ji-Paranó/RO e Porto Velho/RO – 04/04 a 23/09/2018)
2019
– Teatro Municipal Severino Cabral – Campina Grande/PB (06/04) – Campanha de Popularização do Teatro e da Dança
– Teatro Municipal de Areia/PB (09/04)
– Teatro de Cultura Popular Chico Daniel – Natal/RN (10 e 11//04) – Edital Pauta Livre
PRÊMIOS E INDICAÇÕES
– Melhor Ator no 29º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau/SC (2016)
– Melhor Ator no Festival Ipitanga de Teatro FIT Bahia (2016)
– Menção Honrosa: PESQUISA DE LINGUAGEM no 29º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau/SC (2016)
– Menção Honrosa: DRAMATURGIA no 29º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau/SC (2016)
– Indicação de Melhor Trilha Sonora no VI Festival de monólogos – Teatro e Dança – Solos Brasileiros/Fortaleza-CE (2016)
– Indicação de Melhor Cenário no Festival Ipitanga de Teatro FIT Bahia (2016)
– Indicação de Melhor Ator e Melhor Espetáculo no Troféu Cultura do RN (2016)
– Melhor Trilha Sonora no Primavera do Teatro – Festival Nordestino de Teatro em Guarabira/PB (2017)
– Indicações de Melhor Diretor, Ator, Cenário e Dramaturgia no Primavera do Teatro – Festival Nordestino de Teatro em Guarabira/PB (2017)
CRÍTICAS
CRÍTICA/ANÁLISE DO PROF. DR. VALMOR NINI BELTRAME – (FLORIANÓPOLIS/SC 08/08/2018)
O espetáculo P’s é de uma densidade que arrebata. Impossível sair do teatro como se entrou. O que parece um fato individual nos lança a pensar sobre o que nossa sociedade tem produzido. Os medos, sobretudo da rejeição, da ausência do amor e do olhar fraterno, o que produz? Gera o quê? O que temos feito? O ator, Alexandre Muniz, nos mantem suspensos durante todo o trabalho, não há possibilidade de olhar para o lado, ele é contagiante. Além disso, diz com competência o texto. O cenário de Custódio Jacinto cria uma paisagem que junto com o sotaque me levou para o nordeste do Brasil, mas o dito é daqui e de todos os lugares. O som, produzido pela trilha sonora original e executada ao vivo pelos músicos Aglailson França e Emanuel Bonequeiro, é impecável e cria tensões que aprofundam os conflitos da personagem. Lourival Andrade, o diretor, continua incansavelmente intrigante, original e inconformado. Foi maravilhoso e instigante ter assistido P’s no Festival Palco Giratório do SESC em Florianópolis (07/08/2018). Parabéns a Trapiá Cia Teatral de Caicó/RN.
CRÍTICA/ANÁLISE DA PROFª DRª VERÔNICA FABRINI (UNICAMP E BOA COMPANHIA) DE P’s NO I FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO UNIVERSITÁRIO DA UFRN/2017
É a primeira vez que alguém se interessa pela minha vida
É daí que P vem. Dessa matéria árida, dessas formas de aspereza, de difícil beleza. Imagino Foucault passeando pelo sertão. Pois o filósofo francês, tão querido de artistas movidos pelo espírito revolucionário (e aqui incluo o elenco de P´s), tece seu complexo pensamento por entre os fluxos entre exterioridade (social, histórica) e subjetivação (interioridade). Será que Foucault teria escutado os sinos nos pescoços das cabras? Teria visto um açude sangrar e desejar estar debaixo d´água? Teria reparado na solidão do imenso céu, nesse tanto de espinho? Nesses rios secos? Teria notado a tensão entre os tantos nomes de coronéis e palavras indígenas que nomeiam essas terras?
Foucault publica em 1973 Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, junto com grupo de estudos do College de France, tomando esse caso para discutir as relações entre psiquiatria e justiça penal, e talvez possamos dizer também, entre interioridade e exterioridade.
Gregory Haertel escreve essa brilhante e concisa adaptação 44 anos depois, para um grupo de teatro do sertão do Caicó, dirigida com maestria e refinada sensibilidade por Lourival Andrade.
P. mata porque ouve uma voz dentro da sua cabeça, mas também porque é todo cercado de aspereza, é aquele que a vila construiu como “o abestalhado”, o que “não vale nada”, P. bicho, P. de Pobreza, P. semianalfabeto, P. que é o nada do nada, o ser-coisa que a douta ciência coloca abaixo das categorias do humano. Para P. apenas dois espaços possíveis: Prisão ou Manicômio. P’s encenado em Caicó, nesse contexto de Brasil em dezembro de 2017, fala longe, porque é o P. de nossa pobreza consciente e parricida.
Mas P. escreveu. Escreveu como pode. Para que ficasse. Para que soubessem.
A paisagem no palco é a condensação dessa exterioridade que vai penetrar no texto e no corpo, no fundo escuro de tantas almas do sertão. Isso porque a paisagem da cena respira e o que faz ela respirar é a paisagem sonora, que desenrola o tempo, que dá densidade de noite, que dá dimensão de espaço longe com os sinos das cabras (esse resistente ser do sertão) e alguns pios, como ecos das penas espalhadas no chão. O tempo também se condensa no cenário, de forma similar à que o cenário se espraia no tempo, por meio da belíssima trilha de Aglailson França (por ele executada com o parceiro Emanuel Bonequeiro).
O tempo é como que congelado pela iluminação (quase barroca de Adriano Nunes) e pelo cenário. Acho que congelado não seria bem a palavra. Ele torna-se um vórtice. O passado de P e seu iminente futuro. Momento de suspensão e intensidade. Vórtice antes da sentença final. Afinal é a história de uma vida até esse ponto zero da cena.
Aqui está ele, o jovem P. Observando o “exterior” por entre as frestas da cerca. A história de P, que degolou mãe, irmã e irmão. P de Pedro, alma irmã de P. de Pierre Rivière, autor do mesmo crime no século XIX, que tem seu caso publicado nos Annales d´hygiène et de Médecine Légale, em 1836:
“vinte anos, 5 pés de altura, cabelos e sobrancelhas negros, suíças negras e ralas, testa estreita, nariz médio, boca média, queixo redondo, rosto oval e cheio, tez morena e olhar oblíquo”. (grifo meu)
Com esse “olhar oblíquo”, olhar torto numa cabeça torta, construção matriz que guia a sensível e forte atuação de Alexandre Muniz, já indica que aquela cabeça e aquele corpo estão em desacordo. O fluxo de pensamento voa solto e o corpo-bicho espreita por entre as varas de marmelo, dessas que eram usadas para punir escravos e dar surra em crianças indisciplinadas2. Uma surra de vara de marmelo deixa cicatrizes que podem durar pelo resto da vida. Maestria do detalhe do cenário, assinado por Custódio Jacinto. O corpo de P absorve a provocação material da cenografia, é vara e pena, facão e livro.
Conduz essa espreita o som de um tambor-coração que vem do fundo. Não de caixas de som, mas um tambor vivo, de couro, do couro de P., esticado e percutido pra fazer soar o som do seu coração de bicho. E toda a paisagem sonora tem essa textura, ela vem do fundo da alma e do fundo o espaço. Está ora lá encima no canto assobio de pássaro, ora lá longe no sino das cabras, ora lá dentro coração e sopro de respiração esquentando o metal. A trilha também é todo um jogo entre interioridade e exterioridade.
Os trajetos no espaço, o desenho do corpo no cenário segue o rito deslocado de um bicho na jaula e as penas espalhadas no chão trazem um corpo que se debateu nas paredes tentando voar pra fora, pro imenso céu do sertão, que tentou voar e não consegui. Impossível escapar de uma jaula de vara de marmelo que surra escravo e criança mal criada. Cenário para “Vigiar e Punir”, como gostaria nosso filósofo…
Nana menininho, nana meu amor, que a faca que corta dá talho sem dor.
Olhar oblíquo. Cabeça inclinada, andar entrecortado.
Vestido com uma blusa de fazenda azul, um gorro e botinas. Rivière não tem nenhum recurso; ele mendiga.
“Eu matei um passarinho e enterrei”. Ele era o passarinho. Ele enterrou sua doçura e fragilidade, sua liberdade. Teve que enterrar. Pois ninguém- nem a família, nem a vila, conseguiam enxerga-lo. Mas ele sobreviveu, porque escreveu: linda afirmação da palavra, da escrita como existência, como memória que ganha a exterioridade.
“Sobrevivi a mim porque escrevi um livro” (e quando ele diz isso, escutamos os assobios dos pássaros, duplos de voz). Como pode um bobo, um débil-mental, um vale-nada escrever um livro? E é aí que P. vai torcer a expectativa da douta ciência e da douta lei.
Mais surpreendente ainda, ele assume a própria bestialidade, consciência lúcida de sua revolta contra a humilhação sofrida pelo pai. Ele afirma três vezes, os três “sins”. Ato premeditado, consciente e sem arrependimento. Como se arrepender de ter nascido pobre, da mãe odiar e humilhar o pai, de ser mal falado por toda a vila porque não se enquadrava no normal? Escrever é aí um ato, um gesto, um discurso para o mundo. E é nesse trecho que lindamente a cena nos faz ouvir assobio e tambor em tensão, pássaro e pelotão de fuzilamento, ou pássaro e coração, ou ainda a voz do pai (duplicado nas múltiplas imagens do espírito santo). História torta sobre a sombra. Dar a ver a sombra do mundo. A sombra de si, a sombra do humano, arrancada a saca-rolha pela aspereza da vila.
A mão da lei espalmada no rosto, mão que entorta aquela cabeça querendo arranca-la daquele corpo, é também mão da ciência e da justiça. É como um tapa-gestus, um tapa na cara. Mais do que um tapa. A mão espalmada esconde também um rosto que não devia estar ali. Que não quer ver quem está aí. Ou quer parafusar a cabeça no pescoço?
A peça fala do desagradável.
Nos comentários, ao final do livro organizado por Foucault, lê-se
“Somente um homem protegido na sua vida, o oposto de um nativo, um médico, pode, diante de Pierre Rivière, espantar-se, vacilar e sofrer, porque, quando seu crime lhe é lembrado, ele fala disso com uma espécie de tranqüilidade que faz mal (certificado do dr. Bouchard). É que o horrível é cotidiano.” (Jean-Pierre Peter Jeanne Favret, FOUCAULT, op. Cit p.188, grifo meu).
No espaço da cena – jaula, gaiola, arena,- P. é ao mesmo tempo o algoz dos bichos que martirizava e bicho martirizado. O masculino humilhado é uma inversão que chama a atenção, pois vai contra o sentido que se espera na longa história das humilhações: se fosse uma mulher, e se fosse a mãe? E se fosse a mãe a figura humilhada e não o pai? O pior é que quando pensamos nisso, pareceria mais natural… O fato de ser o pai deixa tudo mais torto. Agride mais a história. Afinal é ele que deveria ser o provedor, a figura central de referência para P., pai centro de tudo, Deus Pai, eixo da sociedade patriarcal. Mas não. Ele é só o “espírito santo” que colocou P. no ventre da mãe. As várias pombas vão multiplicando seus sentidos. Elas são o Pai, o pai, o pássaro sacrificado que P. enterrou e fez discurso fúnebre, são delas as penas espalhadas no chão da gaiola de marmelo denunciando a impossibilidade de voo. Impossibilidade de classe? Pobre classe campesina… em 1836 e hj no sertão do Brasil.
É a primeira vez que alguém se interessa pela minha vida
O que intriga é compreender o que aconteceu, o que “deu errado nele”. Enquanto a douta ciencia e a douta justiça não entender se sentirão “ameaçados pelos facões de vossos filhos”. Essa é a charada. E sem resposta, pois trata-se da tensão entre exterior e interior. Trata-se da luta de classes. Trata-se ainda dos grandes arquétipos do Pai e da Mãe. Da concepção sem o pai. Da mãe terrível. Das leis do patriarcado também. O que um homem deve ser.
E aqui está o nó da dramaturgia. Nessa pergunta. o que “deu errado nele”? A cena é então atiçada pelo tambor e pios, e o enterrro do pássaro do início reaparece agora, com esse sentido ampliado pela dimensão social (a justiça, a pobreza) e arquetípica (o pai, o espírito santo, a mãe megera). Mas as penas são também metáforas do sangue do assassinato, animais sacrificados para que a terra voltasse correr em seus eixos. E o enterro do pássaro sublinha a crueldade do não-enterro da mãe, irmã e irmãos.
Ser condenado a ser quem se é e com isso abrir fissuras nas certezas da Justiça e da Ciência.
E ainda, recorrendo ao livro organizado por Foucault:
“Pois passada a tormenta revolucionária, logo moída pelo pilão do império, sob que traços se reencontrará, na sociedade ressuscitada, os homens do campo? Que assunção a igualdade de direitos, apenas formal, e a liberdade de adquirir revelaram a esses seres? – Na verdade nada mudou. Eles continuam animais; o discurso dominante não se deslocou. Eles são o que há de mais Outro. Animais ou coisas, algo vizinho do nada, dos quais não se pode pensar com seriedade que tenham algo a dizer. Os médicos apiedados continuam a detalhar sua monstruosidade, relegam-nas sempre para o lado da aberração da natureza. (…)A nova regra não mais permite esses jogos de desprezo sem provocar efeitos de retorno. Eles vêm. ” (ib. p. 193)
E ainda,
“Para ultrapassar a barreira e alcançar uma amarga vitória, ele sozinho, resta-lhe morrer, quer dizer. matar. Explodir numa cerimônia púrpura. Para ela, nela, depois dela, ele poderá dizer a verdade e, monstro, deixar transparecer em seus dias monstruosos a regra de mentira e a máquina imunda ao sabor da qual seus semelhantes, os danados da terra, são e foram triturados, a cada dia, a cada vida. Tanta paciência e tanto sofrimento fizeram faiscar no braço de um dentre eles o clarão cortante desta foice: a santa impaciência. Pelo peso de sua vida engajada, sacrificada, e de três outras vidas dolorosas, sob seus golpes duplamente vítimas, o justo e o injusto, trocados, serão finalmente por Pierre Rivière restabelecidos em seu lugar primeiro, neste dia em que começa sua própria morte, dia de sua morte que não mais acabará, e que deve vir para pôr fim a todos os [seus] ressentimentos. (Estas são as últimas palavras de seu manuscrito. ) (idem, 189)”
“Eis com efeito que, por volta dos anos em que nasce Pierre Rivière, começam a se produzir incidentes inesperados. O campo, universo silencioso da infelicidade, deixando de sofrer somente sua condição, exterioriza-a e produz, como tantos, outros sintomas significativos, crimes assustadores. Sintomas: não se pode dizer melhor, já que é pela medicina, que deles logo tira as suculências procuradas de seus anais, que deles conhecemos os casos. Eis que criadas camponesas matam sem razão, mas cruelmente, as frágeis crianças que amam, que eram confiadas aos seus cuidados. A mulher de um jornaleiro, passando necessidade, não mais suportando os gritos de fome de seu filho de quinze meses, golpeia-lhe o pescoço com um cutelo, sangra-o, corta-lhe uma coxa, que come. Ela conservava, no entanto, em plena miséria, uma cabra, um pedaço de jardim, alguns repolhos. Antoine Léger, vinhadeiro, deixa a sociedade de sua aldeia, vive nos bosques como um homem selvagem, agride uma menina e, não podendo violentá-la, abre-a com uma faca, chupa-lhe o coração e bebe-lhe o sangue” (ib. pp.193, 194)
Na p. 25
“Jean-Louis Suriray, 43 anos, cura da comuna de Aunay:
O acusado sempre me pareceu ter um gênio muito doce, passava por idiota em sua aldeia e mesmo em toda a paró- quia, mas, tendo falado algumas vezes com ele, não concordava com isto. Ao contrário, sempre reconheci nele a aptidão para as ciências e uma memória prodigiosa, mas parecia ter uma extravagância na imaginação.”
“extravagância na imaginação” escrito em itálico.
Quanta crueldade a imaginação humilhada é capaz de criar. E transformar em ato, quando imaginar não basta, quando a imaginação humilhada não encontra espaço para existir como subjetividade, afinal, um pobre bobo de uma família pobre é um sujeito? Pode imaginar?
17 de julho de 1835 Charles Grelley, 49 anos, comerciante
“Posso lhes dar poucas informações a respeito do caráter e antecedentes de Rivière, pois minha casa é bem distante daquela em que vive sua família. Direi somente que ele geralmente passava por louco e que, quando se falava dele, dizia-se comumente “o imbecil do Rivière”. Eu o vi uma vez, tinha ele então dez ou doze anos, rasgar seu lenço em farrapos, passando-o com força sobre um -espinho, como se penteasse uma estopa de linho. Escutei dizer (mas nunca vi pessoalmente nada a este respeito) que Rivière muitas vezes mostrou-se cruel para com os animais, e que agradava-lhe fazer sofrer rãs e arganazes que encontrava nos prados.” P. 33
“Relatório do ministro da Justiça ao rei. Paris, 8 de fevereiro de 1836. : Rivière era de um caráter sombrio, melancólico e bizarro; às vezes deixava a casa do’ pai e passava a noite nos’ bosques. Um instinto de crueldade se revelava nele até em seus divertimentos; assim narram que, quando criança, prendia numa tábua, com pregos, passarinhos e rãs, e observava- os morrer, rindo como um imbecil, imaginando, dizia ele, a paixão de Jesus Cristo”, p. 167
COMO SE FORMA UM CARÁTER?
Precisei da viagem de volta e da janela do ônibus para entender melhor a importância de P´s no país hoje. Olhar as casinhas na beira da estrada e imaginar suas vidas, suas durezas, sua trágica invisibilidade. Coisa que ensaiou uma mudança no governo passado (FORA TEMER!!! E toda a corja!), e tantos novos campus universitários espalhados por aí, gerando novas demandas, possibilitando novos discursos, dando forma a sensibilidades invisibilizadas. Deixando que tantos outros Ps exponham as contradições, os trágicos paradoxos de vidas que simplesmente querem existir com dignidade. Longa vida a P´s. Que a arte possa cumprir sua função – difícil função – de tocar o coração e gerar mudança. Para que não seja mais preciso Ps.
“Fechado este dossiê, tão duro, tão branco, talvez fosse necessário (gente de discurso que somos, como os juízes e os médicos) saber, por nosso lado, deixar a essa vida, o lacre que ela própria se deu, e guardar silêncio. Mas, abandonar sem ecoar uma voz que, porque o tempo passou, ressoa em nós hoje e faz nascer palavras – será isso preciso? Não estamos quites com esses mortos”. (ib. p. 187)
CRÍTICA/ANÁLISE DO PROF. DR. ANDRÉ CARRICO (DEPARTAMENTO DE ARTES – DEART, PROFESSOR DO CURSO DE GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO DA UFRN) DE P’s NO I FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO UNIVERSITÁRIO DA UFRN/2017
Piam pássaros, um som rascante e grave se soma aos trinados, varrendo o ar do palco. É o sinal de que penetrados uma consciência. Enjaulado por uma cerca sertaneja de pau, um bicho-homem busca entender a razão dos atos que o levaram àquela condição. O cenário de Custódio Jacinto traz para o Seridó a prisão francesa do século XIX na qual sucumbe um condenado. Deslumbrantemente lindo, para além de sua função dramática, deveria também ser exposto algum dia, como instalação numa exposição de Artes Visuais (fica a sugestão).
Alexandre, o ator, dá conta do texto de Gregory Haertel, difícil de fazer, bem escrito, cheio de subliminares, escuras e fundas palavras que devem alcançar a lógica do pensamento de uma mente tão perturbada quanto lúcida. A direção de Lourival não se afoita aos clichês dos berros, saltos e bateções – a movimentação acompanha de forma tranquila o fluxo de consciência do personagem, nenhum gesto é forçado. É calma como um remanso, dança com o âmbar da troca de luzes e o ritmo da música.
A trilha-sonora vai estabelecendo claras paisagens sonoras: a marcação seca do tambor, a delicadeza dos chilros de pássaros, o trombone – que ora se assemelha à voz humana, ora realça a ambientação sombria. O que marca a qualidade dessa trilha não são os arroubos costumeiros que embalariam um clima de terror psicológico ou o apelo fácil aos gritos estridentes do metal – mas a sutileza com que o trombone é tocado por Aglailson. As três dimensões: a ternura do apito, o peso do tambor, a gravidade do trombone, estão combinadas de maneira harmoniosa e singular.
O pássaro não se apresenta apenas nos assobios do apito, mas também numa imagem da arte escultórica popular: um Divino Espírito Santo em madeira marca tanto a sombra da religião a pesar sobre os ombros de Pierre, quanto a ideia de liberdade que a própria ave dá. E a metáfora da liberdade contrasta com a prisão do perturbado criminoso. Em linda cena, quase ao final, o protagonista retira penas de um cesto e as joga pelo ar; elas se juntam a outros chumaços que já forravam o chão. Pierre varre essas penas todo o tempo, como se quisesse varrer a sua “pena”, de culpa e memória.
Em relação ao contexto do Brasil do século XXI, a pertinência do cárcere, aliás, talvez seja o mais oportuno dos temas trazidos. Para que servem afinal as prisões? Parafraseando o autor da fonte primária da proposta, Foucault, pergunto: elas existem para punir e vigiar? Para os de fora se sentirem vingados? Quem são os pássaros que estão nas gaiolas deste país? Qual a eficácia dos presídios que, quanto mais sofisticados, mais o crime alastram? E poderíamos ir além: para que servem as nossas prisões interiores, cheias de culpas, remorsos, memórias de ações impensadas. Quantas vezes esfaqueamos nossos “irmãos” e amigos com nossas palavras e atitudes? Dentro da disputa infantil do meio acadêmico, da exigência por uma produtividade insana nas universidades, da mesquinharia dos pequenos poderes doutos, da inveja entre os pares, quantas vezes nós somos assassinos uns dos outros?
Tão importante quanto a questão da liberdade e eficácia da detenção, o texto também reflete sobre os limites da definição de loucura. Quem é louco: o “psicopata” que se justifica a partir da coerência de suas razões ou a Justiça que busca se escorar nas absurdas amarras tabeladas da Ciência (parece que o processo de Pierre é do começo do pensamento cientificista). E o Direito é uma “ciência”? Ele dá conta da complexidade de nossa alma?
Muitos outros são os temas provocados por P’s. E caberia rever a peça outras vezes para sobre mais discorrer.
Achei interessante como, dentro do Festival de Caicó, inúmeras peças externaram o ódio ao pai, justificado, em seus contextos. Numa delas, houve até um ator, em cena altamente freudiana, que chegou a proclamar o desejo da morte de seu pai. Paradoxalmente, em P’s, última peça da mostra, acompanhamos uma comovente declaração de amor ao pai! Talvez eu sinta como filho amoroso que fui, órfão aos 14 anos, e hoje pai dedicado: é bonito tentar compreender Pierre não pelo ódio à sua mãe, mas pelo amor a seu pai.
CRÍTICA/ANÁLISE DA PROFª DRª BYA BRAGA (UFMG) DE P’s NO 29º FITUB/2016
Queridos de Caicó, do Brasil e outros cantos. “Eu preciso destas palavras escritas”… digo isso com Artur Bispo do Rosário. Trauerspiel… (tom mais grave) Trrrauaschpial… Abgrund… Apgrrrrund… (Fazer que não com a cabeça. Má pronúncia) A pronúncia da tragédia e do abismo é um trabalho bem difícil. Trrrauaschpial, tragédia em alemão. Apgrrrrund, abismo, em alemão. Estou de luto. Olhei hoje para mim e vi que escrevia de preto. E minhas letras estão, fatalmente, vestidas assim também, negritadas. A tragédia é um jogo de luto. Trabalho de luto. A tragédia faz um desnudamento visceral do ánthropos, do homem e mulher que que são mortais e viris. “O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre o abismo”, nos diz o filósofo Nietszche. Nitcheá… Nitcheá… A personagem P pode não ser totalmente carente e nem totalmente pleno de algo. P é a própria corda que se estende sobre o seu abismo a fim de se salvar, mesmo por meio da morte. P está só. Na língua portuguesa, brasileira, de acento, pronúncia e marca nordestina, P é só. Intensamente só. Ele olha para seu próprio abismo. Sua coragem, louca para uns, dá a ele o prazer de se estar na vertigem de um abismo e atender suas vontades. Nitcheá nos pergunta: “onde o homem não estaria diante de abismos? O próprio ver – não é ver abismos? (…) Quem tem ouvidos, que ouça”. Apgrrrrund, usada por Nitcheá, de acordo com alguns pesquisadores, pode revelar um jogo no qual a segunda parte da palavra nega a primeira: ap, sem, grrrund, chão. Sem chão, sem fundamento racional no repertório dos conhecimentos oficiais existentes. P é um “sem fundamento”? Precisaria escrever para não morrer. Ele tentou… O espetáculo mostra isso, mostra a importância do ato de escrever para P. “Eu sou e eu não sou”, diz P. “Eu sou aquilo que vocês não entendem”, diz P. Quando outro filósofo, “Diórdio Áganben”, comenta que “a tragédia consiste na incapacidade da gente dizer o que se quer dizer”, P, talvez, mostre isso. Ele não diz de seus próprios tabus. E, assim, mostra seu aniquilamento por não saber dizer e por querer se libertar com a escolha de outro modo de dizer, ou seja, matando. Mata a mãe em primeiro lugar, sua maior diferença, pois a mulher tem outra língua… Ele mata a presença feminina que o patriarcado insiste em não entender. Possivelmente, em algum momento, em algum lugar, ele pode até ter aprendido que a mulher era uma causadora única de mal. Mas, definitivamente, não é. O que P diz? Ele diz também como o dizer dos passarinhos… Mas eu precisaria de um glossário do canto dos passarinhos do sertão de Caicó para poder entender P… Mesmo assim, se me dedico a compreender tal língua e a pronúncia do nordeste brasileiro, posso realmente conseguir entender P??… P é qualquer P…, ao fim, que veio ao mundo marcado por hereditariedades descritas em compêndios médicos (e suas doenças tão cheias de verdades…). E será a tragédia que servirá de boa tradutora para um diálogo com P. É preciso existir a tragédia para alguém se interessar pelo o que P fez… Ele próprio ressalta: interessar pelo o que ele fez de mal, não pela sua sede, seu sonho. O sudeste e o sul do Brasil precisam ainda de tradutores (trágicos) para entender a sede e o sonho do nordeste deste país?? P vai só. P voltará para o sertão do Caicó. Mas está ele acompanhado de Villa-Lobos que não precisou de tradutores trágicos para ouvir o alemão “Yiôrram Sebastian Barr” e o canto do nordeste para compor suas Bachianas Brasileiras, cuja ária (Cantiga) das Bachianas nº4 se baseia na canção “Ó mana deixa eu ir”… (cantar e assobiar). O final do espetáculo nos mostra um canto de despedida sem palavras que, se soubermos silenciar e ouvir, poderemos ficar tomados da solenidade e da tragicidade que este fim propõe. Vemos ali uma dimensão profunda do abandono no trio sério, sóbrio e digno dos atuadores que se apresentam, transformando a cantiga popular em uma real marcha fúnebre. O ato de ir só é um ato trágico que é próprio de nossa existência. No trabalho cênico que testemunhamos ontem existe a temática trágica em si, com o assassinato da mãe, da irmã, do irmão, por P, em uma lógica coerente da personagem que parece justificar a construção de seu ato em determinados argumentos. Não há tempo aqui para enveredarmos na opinião sobre se a pena de prisão perpétua que ele recebeu, por fim, foi a mais acertada. Eu me dilacero com a narrativa apresentada e isso também é mérito da boa atuação mostrada no espetáculo-estudo para a figura P. Minha única ressalva a ela é que possa se inspirar mais na cantoria para fazer sua fala soar com maior variação melódica. P se apresenta em diálogo com o canto dos pássaros. Eles são as vozes que o atormentam, mas são os cantos de Caicó! A utilização do canto de pássaros desta maneira no espetáculo imprime uma problematização bem interessante para o que são as vozes imaginárias que um (chamado) louco escuta. O diálogo da atuação com a música é, portanto, ponto de grande acerto no trabalho. Aliada aos sons, a sombra inicial projetada a partir dos galhos de marmeleiro, invade a plateia e nos traz uma sensação de aprisionamento conjunto. Iremos juntos para o abismo?… O abestalhado, o retardado que é P, aos olhos dos outros, tem corpo que não se põe ereto, de fato, como se estivesse sempre na reação física de quem leva pancada. O desenho das ações físicas, que podemos chamar de partituras, tem forte sentido na sustentação da figura de P e se repetem. A repetição de gestos carrega uma intensidade como a repetição das poucas notas musicais das melodias que os acompanham. O assobio é real ação vocal, como outros sons, seja o Xiiiiiii, seja outro. Existem ações de ator ou seja, uma artesania de ator, como eu defino a partir de estudos que faço sobre artesania e performatividade, ações que antecipam a caracterização de outras figuras que estarão presentes no espetáculo, ou mesmo de outros estados de atuação da própria personagem P como, por exemplo: o momento em que P segura pela primeira vez a vassoura para falar da mãe. Ali eu já pude antever a visão da personagem sobre a mãe: bruxa. E isso se confirmaria depois com a dramaturgia: “a bruxa que era a minha mãe”. É um belo momento de atuação este. Outra ação, ainda, é aquela em que P usa o tecido que foi estendido e quarado anteriormente como um manto que o acolhe. Manto que vem a figurar uma aparição de um ser que me ressoa um beato. Outras ações de ator são ricas porque possuem precisão no seu movimento expressivo e um ótimo diálogo com os objetos e o que eles podem simbolizar. Por exemplo: o uso do machado com pausa, o uso da cesta como máscara, o uso dos pássaros de cerâmica como símbolos dos três ortos, o uso do ato de varrer e de fazer os pedaços de chão levantarem. O público pode ter considerado bonita a imagem dos pedaços de chão que se levantam, mas o incômodo real com a poeira ali levantada também aconteceu. Podemos pensar que o chão seco da caatinga, do Seridó, da Vila do Príncipe, de Caicó chegou em nós. O abismo se aproximou de nós… Guimarães Rosa nos diz em seu Grande sertão: veredas que “A morte é corisco que sempre já veio”. Caicó é no Seridó do RN, lugar de pouca sombra, como diz a etmologia indígena tapuia da palavra. Portanto, lugar de iluminação. Que outras luzes (sobre a finitude) temos do espetáculo? Para finalizar, lanço alguns temas: o deus judaico, o deus cruel do antigo testamento da bíblia cristã era o deus que mandava matar os filhos. Muitos pais massacram os filhos até hoje. Não os entendem. Temos também uma cultura patriarcal fortemente institucionalizada no Brasil. O patriarcado é uma construção cultural que oprime muitas mães, filhas ou, simplesmente, oprime as mulheres. P parece ser um filho legítimo do patriarcado. Isso não justifica que ele possa tirar a vida de alguém. Mas, o tapa que ele leva na cara, em ato dele mesmo, toda vez que alguém lhe pergunta algo sobre seu crime é também o tapa que levo de Bertolt Brecht que diz: desconfie de tudo que lhe pareça natural… É natural ser contra o matricídio e o parricídio. Mas, o patriarcado não é natural. Ainda não entendo P em suas atitudes. Desconfio que algo existe para além de nossa vã filosofia ou medicina. A misoginia pode ter um traço bastante trágico. Ela me parece presente. O espetáculo tem, assim, grande mérito em sua escolha temática e boa coerência em sua adaptação dramatúrgica e de encenação, revelando uma potente atuação, seja com P, seja com a música. O trabalho de luto continua. Parabéns!!!!
Por professor Antônio Neves (depois de assistir P’S)
P’S é uma peça para assistir na companhia da angústia solitária do próprio personagem “P”, provocada pela sua trajetória de conflitos interior, consequência do amor negado e transformado em afeto matricida que o faz autor de crime premeditado: P assassina toda a família, mas poupa o pai, a quem classifica como um homem bom.
O texto, que merece alguns reparos simples de entonação de linguagem para contextualizar a própria angústia libertária do personagem e encubá-lo no movimento que a narrativa exprime, transmite em cada palavra lançada pelo olhar cortante do seu intérprete, um incômodo ocasionado pela invocação da força da expressão que a interpretação forte e contundente do ator Alexandre Muniz nos impõe, afinal, P é um sujeito de belicosa argumentação que se coloca na condição de réu vitimizado e suicida afetivo, pois no meio do sertão matador ele é mais um jovem agricultor que se compõe dos restos da memória da sua infância, tão parecida com a de tantos P’Severinos” que João Cabral de Melo Neto pariu.
Há filosófica Razão Pura e outras maldades criadas pelas inconsequências das sobras do Humano, Demasiadamente Humano que P cultiva na sua tristeza falseada de loucura. Sua personalidade é a própria dúvida entre realidade e fantasia, repousa na relação familiar de amor e ódio e suas carências vingadas por crimes de morte. Seu desespero nos remete a Kant, ao dissecar o mal dilacerado pelas urgências de um propósito afetivo não realizado entre sua família, ele e seu pai. Seu olhar acusador é irrigado de poesia injustiçada que transpira por palavras cortantes um enredo costurado entre tragédias de mortes e as dúvidas que o proclama inocente e caçador de si mesmo, dignificando a sua imagem dilacerada pelos flertes alucinógenos de tudo o que se desmancha no ar – a loucura compartilhada com a morte!
P’S pode ser uma súplica de amor, numa narrativa que denuncia as falhas do espírito humano comum, sempre muito parecido com tantos dramas vividos e encenados sertão adentro por franceses, judeus e seridoenses, é romântica na sua literatura fúnebre; quase um clichê, se não fosse o apego a sua dramaturgia morredoura envolta a lamentos de um personagem que se autodenuncia para ser livre, por isso, não é permitido sair antes do último ato, pois P é aquilo que não entendemos!
Os conflitos existenciais de P se desenrolam no calor do sertão que tudo queima, até o afeto, tal o Inferno de Dante, dialoga com pássaros mortos pela crueldade do instinto da alma pueril de um personagem que sempre recorre ao seu porque criança como entrelaçamento de uma verdade corrompida por sua identidade incompleta e golpeada por outros desafetos que se rebelam em volta aos fantasmas do crime por ele cometido contra sua mãe, sua irmã e seu irmão; e é por isso que a narrativa impressiona, pelo simples fato de desenvolver-se numa tradução quase copiosa da realidade do sertão, lugar de “doidos” sabidos, capazes de matar e comer a própria fome numa antropofagia de famintos construída por duelos de vida e sobrevivência, apoiados em laços de parentescos e na infecundidade argumentativa da justiça, da religião e da terra, que tem como acolhimento os insultos que consagram os fantasmas que se colocam sob as dúvidas não traduzidas do público que a tudo assiste em generoso conflito interior que alimenta o discurso provocador das muitas faces existenciais dos muitos Ps que há em nós, mas que no final, nos convence da sua lucidez, como os “doidos” cá-de-nós que revelam nas suas loucuras teatralizadas uma única inconsequência: só queremos ser lembrados.
P’S é uma peça teatral que inaugura uma nova fase no teatro caicoense, é o divisor de cenas entre o amadorismo de então e o profissionalismo que se inicia, com boa produção e significativa sensibilidade de direção. Sua trilha sonora é uma viagem para além da linguagem rítmica da loucura cadenciada de Emanuel Bonequeiro e Aglailson França (dois doidos do Seridó) que se abraçam a ternura lúdica de Custódio Jacinto que assina cenário e figurino como quem, ao acordar de um surto de insensatez cênica risca sua síntese de lucidez sob o chão do sertão despedaçado e faz de P’Suma peça que pede bis.
Parabéns e longa vida a Trapiá CIA Teatral
Antônio Neves
Bacharel licenciado em História pela UFRN. Pós-graduado em História e Cultura Afro-Brasileira pela UFRN. Professor, ativista sindical e sebista caicoense. Mora no Seridó do Rio Grande do Norte. Brasil.
Sertão do Seridó, fevereiro de 2016
Drama Psicológico, Plateia Hipnotizada
5 de maio de 2016 – 8º Festival de Teatro de Jales – SP
A cada dia de festival, mais uma surpresa, desta vez um drama psicológico, baseado no livro Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, do francês Michel Foucault, que foi adaptado por Gregory Haertel, médico e dramaturgo catarinense, ambientado no sertão nordestino.
Na abertura das portas o espectador já se depara com uma situação inusitada para uma peça teatral, no desenrolar da história, que é baseada em fatos reais ele vai se perguntando o que levou o personagem ao crime.
O personagem interagindo com seus próprios pensamentos fez com que a plateia ficasse muito atenta. “Dá muito medo quando ele brinca com a tia imaginária, ao mesmo tempo não parece algo perigoso, ele conseguiu captar o pensamento acredito que de todos nós” , explicou José Vitorino que é diretor e professor da escola livre de teatro, e um dos que estavam hipnotizados pelo desenrolar da peça.
A ambientação musical ocorrida sem gravação dá um tom bem menos mecânico ao desenrolar dos acontecimentos.
Valeu imensamente a noite.