SINOPSE
Uma das maiores secas que assolou os sertões nordestinos desnudou o ser humano em todas as suas fragilidades e complexidades, confundindo-o com a própria natureza que o consumiu e com sua animalidade mais primitiva. Seres sempre em trânsito que precisavam conviver com governos que pouco se importam com os mais pobres e vulneráveis, com cangaceiros que possuíam suas próprias leis, com beatos que prometiam a salvação e a luta, com romeiros que tinham na fé seu único sustentáculo, com a epidemia que arrasou vilas e famílias, com corpos que se deterioravam. O som do resistente bode perseguia os retirantes expondo suas entranhas. Foram vidas, e não apenas números estatísticos, enterradas na terra seca. 1877 nos ensina que o passado pode ser muito presente.
PROJETO DE MONTAGEM
O espetáculo leva aos palcos as terríveis privações vividas pela população sertaneja em 1877, período de uma das maiores secas já experimentadas no sertão nordestino. A falta de políticas públicas e a ganância daqueles que possuíam as terras e dos bens alimentícios, agravaram a situação já calamitosa de ampla população de homens e mulheres que teimavam em não abandonar suas pequenas propriedades calcinadas pela seca prolongada.
Os retirantes que conseguiam chegar a algum lugar menos destruído pela miséria, continuavam na penúria por não conseguirem apoio institucional, agravando seu abandono e tirando dele toda a racionalidade e humanidade que ainda sobrava depois de perambular pela caatinga seca e desafiadora. Não é de se estranhar que canibalismos ocorreram neste período, como foi o caso de Donária dos Anjos que matou e comeu a menina Maria na cidade de Pombal/PB, tendo como justificativa para seu ato a fome avassaladora que sentia. Donária e Maria eram vítimas da seca e da miséria.
Os corpos dos sertanejos foram colocados a prova e sua sanidade mental era posta em xeque a cada amanhecer. Tempo de faltas e de angústias que marcaram de forma indelével a vida do sertão nordestino e de todo o Brasil.
Espaços de constante nomadismo onde se encontravam retirantes, cangaceiros, romeiros, beatos e toda a sorte de pessoas sempre em trânsito.
O texto foi construído a partir de diversas obras que trataram deste período e que seus autores conviveram com esta realidade. Podemos citar “Os retirantes” de José do Patrocínio publicada em 1879, “A fome” de Rodolfo Teófilo publicado em 1890, os cordéis de Silvino Pirauá de Lima, além de pesquisas de docentes do Programa de Pós Graduação em História do CERES/UFRN (Mestrado em História dos Sertões) e da obra “Geografia da Fome” de Josué de Castro, publicada em 1946.
Realidades que precisam ser mostradas ao grande público para se discutir a falta de políticas para os mais pobres e também de medidas concretas que priorizem o convívio com a seca. Os mais pobres sempre são os mais penalizados em se tratando de tragédias, pandemias e descasos governamentais. Que a tragédia de 1877 nos sirva de lição. Os bons entendedores, entenderão.
FICHA TÉCNICA
– Texto e Direção: Lourival Andrade
– Elenco: Alexandre Muniz, Emanuel Bonequeiro, Maria Alice, Monica Belotto e Pedro Andrade.
– Cenário e Cenotécnica: Custódio Jacinto
– Figurino: Monica Belotto e Camila Muniz
– Iluminação: Adriano Nunes
– Maquiagem: Bruno César
– Visagismo: Coletivo Trapiá
– Composições musicais: Carú Fernandes
– Composição das paisagens sonoras: Emanuel Bonequeiro
– Execução das paisagens sonoras: Coletivo Trapiá
– Preparação vocal: Heli Medeiros
– Criação do cordel/programa: Djalma Mota
– Fotos: Brunno Martins
TRAJETÓRIA
2023
08/07 – 19h30 – Teatro Alberto Maranhão – Natal/RN
27/07 – 20h – Centro Cultural Adjuto Dias – Caicó/RN
05/11 – 19h – Teatro Municipal Ubirajara Galvão – Aldeia SESC Seridó/Festival Literário Currais-novense – Currais Novos/RN
03/12 – 20h – Centro Cultural Adjuto Dias – Caicó/RN
2024
28/01 –21h – Teatro Maria Bonita – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
27/07 – 20h – Centro Cultural Adjuto Dias – Caicó/RN (Circulação do Repertório Trapiá RN – Festa de Sant’Ana)
03/08 – 20h – Teatro Municipal de Jucurutu Pe. João Medeiros Filho – Jucurutu/RN (Circulação do Repertório Trapiá RN)
10/08 – 20h – Teatro Municipal Municipal Ubirajara Galvão – Currais Novos/RN (Circulação do Repertório Trapiá RN)
21/09 – 19h – Theatro José de Alencar – Fortaleza/CE (Série Cênica Especial)
22/09 – 19h – Theatro José de Alencar – Fortaleza/CE (Série Cênica Especial)
PRÊMIOS
2023
Prêmio – Melhor Espetáculo Cênico – Troféu Cultura RN 2023
2024
Melhor Espetáculo – Categoria Teatro Adulto – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
Melhor Espetáculo Júri Popular – Categoria Teatro Adulto – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
Melhor Direção: Lourival Andrade – Categoria Teatro Adulto – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
Melhor Ator: Alexandre Muniz – Categoria Teatro Adulto – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
Melhor Ator Coadjuvante: Pedro Andrade – Categoria Teatro Adulto – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
Melhor Figurino: Monica Belotto e Camila Muniz – Categoria Teatro Adulto – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
Melhor Maquiagem: Bruno César – Categoria Teatro Adulto – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
INDICAÇÕES
2024
Melhor Texto – Lourival Andrade – Categoria Teatro Adulto – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
Melhor Atriz – Maria Alice – Categoria Teatro Adulto – 11º Festival Nacional de Teatro do Piauí – Floriano/PI
CRÍTICAS
Raquel Littério de Bastos – Cientista Social e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, Trabalho e Inovação em Medicina (PPG-ETIM) da Escola Multicampi de Ciências Médicas – (EMCM-UFRN) – Julho/2023
A Companhia de teatro Trapiá nos serve, em seu espetáculo nomeado “1877”, o prato amargo da fome no Brasil. A engenhosa peça remete ao episódio histórico considerado a maior seca do nordeste, ocorrida em 1877. Rememorando as epidemias e as milhares de mortes no sertão, consegue também fazer uma crítica pungente sobre a última pandemia e os resultados desastrosos de um governo genocida. Não é possível assistir a tal narrativa sem se deixar afetar por um certo desassossego ao perceber que “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, parafraseando Karl Marx. Uma farsa dolorosa que nos acompanha como uma sombra de mau agouro em um país que contou os seus mortos a tão pouco tempo e não parece ter assimilado o necessário para enfrentar as próximas mazelas. Quem busca apenas entretenimento, levará consigo profundas reflexões sobre o Brasil profundo.
Vale destacar que a estética do espetáculo é algo primoroso. Em um exercício criativo e pulsante, a peça não tem a intenção de falar sobre os numerosos casos de morte. Seu alvo está nos corpos. Nos corpos famintos que paulatinamente vão enlouquecendo com as penúrias, fundindo-se com as cores do sertão, com a poeira, a sujeira, a seca e o cheiro da morte. É interessante notar como a fusão entre a estética do palco, os figurinos e a maquiagem dos atores, propositalmente inebriam os nossos sentidos dissolvendo a cisão artificial entre a natureza e a cultura de um povo. Em alguns momentos, os corpos deixam de ser humanos para serem corpos animalizados pela miséria. Quem ainda não leu Josué de Castro e sua obra “Geografia da Fome”, leia! O espetáculo é permeado por várias obras, mas aos meus olhos essa leitura é determinante.
Ainda em uma mística religiosa bastante peculiar do nordeste, o apelo aos santos pedindo chuva e provimentos dão à peça um encanto particular ao rememorar hinos e paisagens sonoras que movimentam afetos pessoais e memórias particulares dos espectadores. Em alternância, beatos e bodes se encontram, enfrentam-se em uma longa disputa por esses corpos, como urubus sobrevoando as carniças. É óbvio, e ao mesmo tempo odioso, compreender que são lados de uma mesma moeda.
Destaco duas cenas, daquelas que te acompanham após o fim do espetáculo. A primeira é a cena do batizado de uma criança que estava morrendo em decorrência da fome, logo no início da peça. A questão da água para o batizado e sua função de portal para uma outra dimensão é impactante e nos faz compreender de forma mais visceral o que significa não ter acesso a água no sertão. São corpos abjetos, cuja vida não tem relevância e por isso podem ser deixados à própria sorte. A outra é a cena do julgamento da mãe que escolheu um dos filhos para alimentar o outro e a si mesma. A atriz Monica Bellotto usa seu corpo para nos contaminar com o desespero dos que são julgados, já estando condenados pelos percalços da vida. O constante esfregar das mãos e o contorcer do corpo são angustiantes.
1877 é um espetáculo para muitos talheres e olhares, talvez seja prudente assistir mais de uma vez, pois é alta a densidade de informações e situações. Tenho certeza de que em todas as vezes será possível ter novas sensações desconfortáveis para os que desejam algo mais encorpado e relevante. Aproveitem!
Linus Lerner – Diretor Artístico e Regente da SASO: Southern Arizona Symphony Orchestra (EUA); OSRN: Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte e OSG: Orquestra Sinfônica de Gramado (Brasil) – julho/2023
O espetáculo 1877 nos traz uma reflexão muito profunda sobre nossa história. Na verdade, uma triste constatação de que a história se repete e o que parecia ser algo inaceitável na época hoje virou lugar comum, ou seja, nada aprendemos ou simplesmente ignoramos. O talentoso elenco e o belíssimo trabalho do diretor nos trazem a dura realidade de tantos nesse país de uma forma inteligente e até mesmo poética. Nos faz questionar ao mesmo tempo que nos revolta diante dos valores da nossa sociedade que cada vez mais estão sendo invertidos em prol de uma minoria.
Gabriel de Souza Santos – Historiador, professor e ativista cultural – julho/2023
Mil Oitocentos e Setenta e Sete. No Brasil a Monarquia, e no sertão nordestino um povo desolado pela seca, peste e fome feroz. É isso que vivemos ao sentirmos e vermos cada cena do ESPETÁCULO 1877. Um misto de sentimentos indescritíveis, que mesmo para o paladar teatral mais apurado e criterioso, não se tem algo mais justo do que os aplausos de pé.
1877 retrata o Nordeste que foi esquecido pelo Brasil, a história da gente que inspirou falas e livros, mas que na ótica popular foi deixado para trás pelos “séculos sem fim, amém”. Confesso que não há como não se emocionar com a atuação e com os personagens que são tão a gente que no desenrolar da trama parece até impossível separar eles de nós, e nós do Nordeste. Aflora-se ali o mais robustecido sentimento de pertencimento que já pude sentir em mim. Faz bem pros olhos, pra mente e pra alma.
O texto, algo marcante nesse delineado nordestino, é de uma singularidade atemporal tremenda. Um espetáculo que une críticas aos governos, políticos e religiosos, sem infligir a liberdade de expressão de ninguém. Tudo baseado no vivido. Em um passado que após o espetáculo se parece mais presente do que nunca. Foi real, é real.
Uma coisa é certa, todo aquele vivente que por ventura assentar-se em uma cadeira para viver 1877, vai sair movido a uma reflexão sobre o ontem e o hoje que nos moldam. Surgirá em si um dilema, tal como aquele shakespeariano, mas que ao fim de tudo, lembrando de cada fala, expressão e cena, não haverá nenhuma resposta senão àquela tão justa “gritada” por Euclides da Cunha.
Perder 1877, é perder nós. E nós “é” o Brasil.
Catarina Calungueira – bonequeira, arte-educadora e brincante popular – julho/2023
1877 é um convite para irmos até o espelho e encararmos nossa forma mais visceral, animal, brutal e algoz de ser. O maior tesouro que a Trapiá nos oferta é poder olhar não somente a nossa capacidade de refinar e semear a exploração e a crueldade, mas também de poder nos incendiarmos do desejo da revolta, da comunhão e da busca pela compreensão de que o princípio básico da evolução e da sobrevivência não é a “lei dos mais fortes” e sim o desejo e o caminhar em direção a cooperação e a coletividade.
Fatima Dantas de Medeiros – Professora de Engenharia de Alimentos da UFRN – – julho/2023
1877. A saga do sertão nordestino, a fome e o desespero diante da morte previamente anunciada em cada seca. Os retirantes em busca do alimento, do abrigo na cidade que quase nunca alcança. O sol a pino de dia, a terra seca, a caatinga. A noite o brilho intenso das estrelas no céu anuncia que não há nuvens e nenhuma perspectiva de chuva. Nem um pingo de água para batizar o pagão prestes a morrer sem o sinal da cruz. A revolta, o certo ou o errado, o roubo, o saque para não morrer de fome. O cangaço, os revoltados e os que seguem a sua sina a caminho da morte. Simbolizando o animal mais resistente à seca o bode em alto e bom tom berra as injustiças dos que detém o poder, totalmente descomprometidos com os sertanejos que agonizam e morrem de fome e sede nas picadas da caatinga, seca, esturricada. O julgamento da mãe que tem como única saída para não morrer junto com seus dois filhos, matar um para salvar o outro. Uma versão ainda mais bárbara e dolorosa da “escolha de Sofia”. Por fim, o beato, o Conselheiro e a perspectiva de organização e luta, numa estratégica menção a História de Canudos. Esta é uma curta síntese que faço da peça 1877, um dos espetáculos de teatro que mais me emocionou. A representação perfeita de tantas histórias escritas por autores como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha e tantos outros. Histórias contadas pela minha família do sertão onde também nasci e pelas pessoas que viveram conosco. O lugar que conheci tão bem quando criança e que trago no coração com o orgulho imenso de ser sertaneja. Parabéns a todo o grupo responsável por esta obra maravilhosa e completa.